Salvador Gomes Villarinho – “O Trabalhador Imortal”
A área do mercado municipal de Silves tem registado nas últimas semanas um movimento pouco usual de operários e máquinas, concretamente no edifício da velha fábrica Villarinho, agora em obras para instalar uma superfície comercial.
Construída em 1870 por Salvador Gomes Villarinho, laborou desde logo com 500 operários, para em 1890 constituir uma das maiores fábricas de Portugal. Destruída por um violento incêndio em 1891, foi elevada à categoria de Real Fábrica Villarinho & Sobrinho em 1897. Cessada a atividade corticeira em 1915, conheceu diferentes ocupações, entre as quais a de quartel de bombeiros. Na década de 1960 seria amputada, em parte da fachada nascente, para a construção da avenida beira rio, encontrando-se desde há muito devoluta.
Mas regressemos ao século XIX e ao seu promotor, do qual os silvenses guardaram por longas décadas grata memória. Ainda hoje se alvitra a vasta riqueza monetária que detinha, que na verdade era grande, mas ainda assim não era a maior da cidade. Grandiosa, ou talvez mesmo colossal era a sua generosidade para com os pobres, os humildes e todos os desamparados da fortuna na cidade que o acolheu, e que o apelidaria muito justamente de “pai dos pobres”.
Natural de Monção nasceu, em Segude, a 26/03/1825. Fixou-se em Silves aos 14 anos de idade, empregando-se no comércio. Em 1853 era caixeiro de Bento Manuel Pereira, para no ano seguinte constituir, com o mesmo, a sociedade Bento Manuel Pereira & Villarinho. Todavia, quatro anos depois já respondia em nome individual. Em 1865 era o 10.º maior contribuinte da freguesia de Silves, com 26$660 réis de décima, para ascender a 2.º maior contribuinte em 1882, com 124$188 réis.
Contraiu matrimónio na cidade com Maria Vitória de Jesus, a 11/07/1852, nascendo o único descendente, Teresa Gomes Vilarinho, a 21/12/1853. Pouco depois do casamento da filha com o seu sobrinho, Francisco Manuel Pereira Caldas, a 05/11/1868, funda a empresa Villarinho & Sobrinho. Na década de 1870 a firma é descrita na imprensa como muito “acreditada e conhecida” na região. Destacava-se não só na indústria corticeira, como no comércio e exportação de figos, que expedia para Lisboa, Bélgica e França (mais de 3 t em 1872), e ainda na produção de sabão após 1873. Na sua casa hospedaram-se, por aqueles anos, o Sr. Cook, visconde de Monserrate, juntamente com um ilustrador inglês, ou mesmo Emile Heise, negociante de Berlim.
Aquando a terrível seca, seguida de copiosas chuvas, que semearam a fome e a miséria no Algarve (1875-1878), Villarinho não só socorreu “da melhor vontade” a Câmara de Silves, concedendo-lhe um empréstimo de 607$250 réis, para que a autarquia pudesse pagar os salários aos operários que trabalhavam em obras públicas, como do norte do país requisitou, a suas expensas, cereais e legumes que distribuiu gratuitamente pela população faminta de Silves.
Gesto que lhe valeu ser agraciado, pelo rei D. Luís, com a Comenda da Ordem Militar de N.ª Senhora da Conceição de Vila Viçosa, por decreto de 26/01/1878, e o foro de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real.
Provedor da Misericórdia, entre 1874 e 1883, promoveu a construção de um novo hospital, para o qual doou o terreno, sendo ainda resultado de diligências suas a atribuição de um importante subsídio pelo governo, 540$000 réis. As obras iniciadas em 1881 prolongam-se por 16 anos, porém o promotor não conheceu a sua conclusão.
Pelas 22:30 do dia 23/11/1883, aos 59 anos de idade, Salvador Gomes Villarinho falecia na sua casa em Silves.
Partia do mundo dos vivos “um dos mais honrados e prestimosos filhos de Portugal, o primeiro e mais arrojado de todos os industriais do Algarve”, nas palavras do periódico “O Progresso do Algarve”, às quais acrescentava “não há lágrimas que possam resgatar tão enorme perda!”, e mais dizia “deixou uma memoria nobilíssima pela magnanimidade da sua alma e pelo exemplo de um trabalho honesto com que acumulou a sua fortuna. Nasceu pobre e morreu rico.”
A cidade que se transmutou pelas suas fábricas, e pelos inúmeros operários que a Silves acorreram a trabalhar e que ali se fixaram construindo as suas casas, chorou, sem distinções de classes, ou partidos, a sua morte. Pouco depois foi promovida por toda a região uma subscrição pública para lhe erigir um monumento.
O Trabalhador Imortal
Dez anos após o seu falecimento teve lugar na Sé uma cerimónia de “transladação das cinzas de Salvador Villarinho”, organizada pelo sobrinho e genro António Pereira Caldas. Tudo indicia que fora sepultado no cemitério junto à Sé, sendo em 1893 transladado para o novo, nas imediações da Cruz de Portugal.
A cerimónia voltou a atrair à cidade milhares de pessoas (ou não tivesse granjeado extraordinário prestígio na região), e contou com a participação de Alves Mendes, então um dos maiores oradores de Portugal, que num longo e eloquentíssimo discurso, publicado em livro, atribuiu a Salvador Gomes Villarinho o epíteto de o “Trabalhador Imortal”.
De acordo com “O Século”, as centenas de operários que assistiram à homenagem aplaudiram, comovidíssimos e freneticamente o longo discurso de mais de uma hora. A igreja, segundo aquele periódico, oferecia “um espectáculo deslumbrante. [Com] o catafalco indizível de coroas riquíssimas”.
Ainda nesse dia foi inaugurado um monumento, contudo ignoramos se se trata do busto em bronze, sobre um plinto em pedra trabalhada, que hoje conhecemos. Certo é que a 07/03/1897 aquando a inauguração do hospital, encontrava-se o busto, em frente ao edifício, coberto com uma bandeira, que foi descerrada, tocando uma filarmónica o hino da Carta Constitucional, enquanto no ar estalejaram foguetes. A Santa Casa da Misericórdia prestou-lhe também homenagem, nessa ocasião, ao inaugurar numa sala um quadro, com o seu retrato, bem como o de um outro benemérito, Policarpo Dias.
Mais de 130 anos após o seu desaparecimento pouco subsiste da memória de Salvador Gomes Villarinho em Silves.
O busto, entretanto relocalizado, perdeu há muito o nome do homenageado e nem o facto de constituir o primeiro monumento do género erigido em todo o Algarve, tem constituído motivo para que os sucessivos autarcas corrijam a situação.
Exaltar a memória e o exemplo de tão eminente figura é um dever de todos os silvenses e agora que a sua fábrica vai conhecer “outras laborações” é mais um momento oportuno para retificar a ingrata e injustificada situação para alguém que tanto fez desinteressadamente por Silves e pelos silvenses, em particular, mas também pelo Algarve, em geral.
Texto de Aurélio Nuno Cabrita
Publicado no Jornal Terra Ruiva – Junho de 2018
(Publicado com a devida autorização)